sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

O Sistema de Participação Cidadã do Século XXI

Por Ivo Fiorotti*
Os avanços consolidados na constituição Cidadã de 1988, particularmente em termos de sedimentação legal de garantias sociais e políticas, foram precedidos por um amplo processo de participação cidadã decorrente da constelação de movimentos na sociedade civil, quer sejam de matriz comunitária, popular, sindical, ecológica, feminina ou de demais segmentos sociais. Este processo da Constituinte e a promulgação da Constituição cumpriram um importante papel de galvanizar na Carta Magna aspirações provenientes das necessidades concretas e materiais destas coletividades. Mas, ficava no então uma questão: como dar continuidade à inovadora cultura da participação e da democracia recém-conquistada, na relação com o estado? Em grau menor em termos de inovação, mas com densidade realtiva a cada contexto específico, os processos da construção das Constituições Estaduais e das Leis Orgânicas Municipais, replicaram em grande parte esta cultura democrática e cidadã.
Como expressa nossa Constituição Cidadã,: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta constituição” (Parágrafo Único, artigo 1.º). O cidadão delega - para representantes eleitos em processos eleitorais a cada quatro anos, nas três esferas da República - a tarefa de administrar e executar as políticas públicas (prefeitos, governadores e presidente) e a tarefa de criar ou aprimorar as regras, as leis (vereadores, deputados estaduais, do distrito federal, federais e senadores. Estes últimos, eleitos para mandatos de oito anos). Mas, o cidadão tem também a oportunidade de exercer sua vontade de forma direta, quando convocado para Referendos, Plebiscitos ou Projetos de Iniciativa Popular, decidindo temas considerados de complexa decisão e de fundamental relevância pública, como o caso do Referendo do Desarmamento.
Os estudos clássicos da Democracia Moderna indicam a ocorrência de um processo de qualificação da cidadania na medida em que avançam as participações dos cidadãos nos processos eleitorais. Ou seja, a cada eleição onde o cidadão é chamado a avaliar e eleger determinada proposta política ou determinado candidato, num processo de satisfação/frustração de sua expectativa política, ocorre um amadurecimento do seu papel de delegar sua vontade aos representantes. A cada processo eleitoral, o cidadão teria mais experiência/consciência de sua decisão. Não pretendo entrar em discussão com os elementos dos condicionantes do clientelismo e/ou outros elementos que levariam à deformação do papel de cidadão, o que reconheço existir numa parcela considerável dos eleitores.    
Comungo com a posição dos que consideram ocorrer avanços significativos de qualificação cidadã decorrentes da participação ativa em inúmeros processos de democracia direta, tais como: o Orçamento Participativo, eleição de Conselheiros Tutelares, escolha de diretores de escolas, dentre outros. Sobretudo, quando precedidos por debates e discussões de suas propostas em microprocessos os mais variados. Em vários estados dos EUA ocorrem processos de eleição livre, não compulsória, de “Xerifes”, os quais desempenham papel similar ao nosso Delegado de Polícia. Todos estes e outros processos livres de participação e, por conseguinte, com participação, nem sempre majoritária dos cidadãos, são considerados fortalecedores da democracia e indicadores do avanço da consciência cidadã.
Nas eleições municipais de 1988, gestores municipais são eleitos com a bandeira da participação cidadã. É o caso de Porto Alegre (RS) e Diadema (SP), dentre tantos outros, que ao serem vitoriosos nas urnas, iniciam com processos de eleição de cidadãos em Conselhos Populares com a tarefa de deliberar em conjunto com o poder público o destino dos recursos do Orçamento Municipal. Aos poucos se formatam diversas propostas de Orçamento Participativo. Resalvadas as particularidades quanto às dinâmicas metodológicas e/ou o tamanho do bolo orçamentário em apreciação, (1) todas tem em comum uma iniciativa política dos gestores que decidem agregar à sua tarefa administrativa o elemento da convocação dos cidadãos a participarem na decisão dos destinos dos recursos em investimentos diretos ou em programas ofertados.  Esta iniciativa política dos gestores gera um (2) processo de qualificação cidadã diferenciada, quando ocorre como uma simples relação de parceria e cooperação pontual entre os cidadãos e os gestores públicos ou quando se institui como um processo de cogestão que imprime uma dinâmica que envolve sua realização enquanto processo de definição, mas também o monitoramento social de sua execução e prestação pública dos resultados efetivados.
Por cerca de duas décadas a novidade do Orçamento Participativo - OP foi replicada em muitas municipalidades, quer seja como processo eficaz de atendimento das expectativas, das demandas e necessidades da população, quer seja como forma democrática de gestão dos orçamentos municipais ou ainda, como proposta de qualificação política dos cidadãos. Ganhou destaque internacional nas diversas edições do Fórum Social Mundial. As próprias propostas governamentais que não postulavam esta perspectiva passaram a considerar a sua manutenção como um elemento importante na disputa eleitoral e na governança posterior a vitória. Em muitos lugares, aos OP’s os gestores públicos agregaram outras iniciativas de interação com a cidadania, tais como: Caravanas do Prefeito e Secretários vistoriando necessidades locais, Plenárias de Avaliação dos demais Serviços Públicos, Audiências Públicas para oportunizar interação e diálogo dos gestores com a comunidade em determinada necessidade e outras formas criativas de interação. 
O próprio Banco Mundial tem condicionado suas políticas de financiamento à necessidade de que as administrações assumam formas de participação da cidadania na gestão pública, inclusive recomendando o OP. Mesmo assim, a grande maioria das municipalidades não adota o OP e, muitas das que adotam, tem passado por processos de arrefecimento, quando não, de delegação a um segundo, terceiro ou quatro plano de importância desta iniciativa enquanto processo de gestão.
A construção de um crescente Sistema de Participação Cidadã, como o que vem ocorrendo na administração municipal de Canoas a partir de 2009, é uma inovação inédita, tanto na ampliação das ferramentas e espaços de participação, quanto à forma de gerenciamento do Orçamento Participativo, forjado no século XXI.  E isto ocorre na minha copreensão, pela agregação de novas ferramentas de participação cidadã na gestão pública, do processo de indução à mobilização cidadã pelos gestores, e pela correta compreensão do atual estágio da sociedade civil em que é possível a mobilização cidadã.
A gestão pública municipal, para além dos tradicionais Conselhos das Políticas Públicas - onde representações de organizações dos referidos segmentos são chamados a opinar e/ou deliberar – criou outros espaços de diálogo entre os cidadãos e o gestor público, tais como: Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, Plenárias de Serviços, Audiências Públicas, Prefeitura na Rua, Prefeito na Estação e Ágora Virtual.
O Orçamento Participativo foi enriquecido quanto aos espaços de tomada de decisão direta, o qual contempla duas dinâmicas: (1) o espaço das Assembleias, sendo o momento presencial de definição da metade dos recursos para a microrregião por decisão direta da maioria presente (muitas destas demandas precedidas por microprocessos induzidos de identificação de necessidades e mobilização junto às diversas organizações sociais); (2) O espaço da Votação em urna, momento em que a cidadania decida a outra metade do orçamento para a microrregião, dentre as até cinco demandas que obtiveram a maior votação na Assembleia Presencial. E, para a obra da cidade, um processo de eleição virtual.
O sucesso comemorado pela expressiva participação, se comparado com outras cidades no Brasil que tem o OP, deve-se, na minha compreensão, a esta conjunção de formas, ferramentas e espaços de diálogo do cidadão com os gestores públicos. Pequenas necessidades individuais têm, por exemplo, no Prefeitura na Rua, Prefeito na Estação e nas Audiências Públicas, a eficácia de sua realização. No OP são encaminhadas as demandas de investimentos, com um caráter de coletividade ou de segmento.
E aqui chego ao último aspecto desta reflexão, ou seja, na mudança das reais e possíveis condições de como a sociedade civil atual pode ser mobilizada, em relação ao período Constituinte e que gradativamente veio se modificando. As primeiras materializações do OP ocorreram no período de efervescência mobilizadora na sociedade civil, na sequência da Constituinte e, respeitadas as particularidades, dos processos constituintes nos estados e nas municipalidades. O poder de articulação e mobilização das minorias ativas presentes nas mais variadas organizações sociais que alimentam/mobilizam as Assembleias do OP tem um grau diferenciado nos períodos de efervescência social ampliada pelos grandes movimentos e nos processo de arrefecimento, como ocorre na atualidade.  A participação no OP é impactada pela pouca organização social da cidadania, com a chamada desmobilização das organizações comunitárias, sociais, etc. Compreendendo este quadro, em Canoas são fomentados, previamente às Assembleias Presenciais e à Votação em Urna, microprocessos de indução da demanda e de convocação cidadã ampla, através de Carro de Som, panfletagens e pequenas reuniões com lideranças organizadas ou não. Este processo envolve os gestores municipais, o Fórum de delgados do Orçamento Participativo e os Conselheiros. Portanto, amplia-se a quantidade e a qualidade de ação das “minorias ativas” neste processo de mobilização social.  Exemplo: em uma rua que não tem asfalto ou em uma vila em situação irregular, moradores são visitados por delgados de demandas em andamento na região, informados da sua conquista concreta e os motivam para irem às Assembleias do OP. A iniciativa destes “novos cidadãos” de ir à Assembleia para ter sua necessidade atendida, de mobilizar os vizinhos de forma mais consistente ou não, oportuniza a inscrição da demanda na Assembleia, sua vitória ou não, mas também é sua inscrição na escola formativa concreta da participação cidadã. Quando a demanda não sai vitoriosa e se classifica entre as cinco mais votadas, ela entra para a lista que vai à Votação em Urna, instaurando-se outro oportuno espaço em que estas “novas lideranças” podem organizar mais um processo de mobilização para a conquista. Verifica-se um rico processo de entre ajuda, de fascinação pelo exercício ativo de cidadania, por parte de muitos cidadãos que passam a ser delgados e Conselheiros no OP. Com frequência, delegados testemunham publicamente como sendo sua primeira experiência de envolvimento pessoal com as causas coletivas e que isto mudou suas consciências de como funciona a “coisa pública”. É um processo de construção de baixo para cima, a partir das reais necessidades da comunidade ou do segmento, que modifica consciências cidadãs. Este processo tem reavivado Associações de Moradores, organizações sociais de diversos segmentos do esporte, da cultura, da assistência social, dentre outras, mas também tem sido o nascedouro, em especial de novas Associações de Moradores. Um caso particular merece menção: várias ruas conquistaram seu asfaltamento na Vila Santo Operário a partir de iniciativas articuladas pelos seus moradores, estes sem ligação com organizações sociais. Os delegados destas ruas - algumas já asfaltadas e outras ainda não, mas com a certeza da conquista - se organizam em uma demanda que lhes é comum, mas que também tem um alcance para toda a vila: Regularização Fundiária da Vila Santo Operário. A mobilização ganhou corpo e alcançam vitória com cerca de ¼ dos votos na Assembleia Presencial mais concorrida na edição de 2011, tanto em demandas como em número de participantes. Forma 16 demandas e 1.178 participantes.
É este conjunto de inovações por parte da gestão pública e de sua inter-relação com os cidadãos que garante a expressiva participação no Sistema de Participação Cidadã.  Ao menos de forma empírica, temos a percepção e a declaração testemunhal de que ocorre um processo de qualificação cidadã e fortalecimento da organização social, em particular, na ferramenta do Orçamento Participativo.  Estudos mais aprofundados deverão ser realizados a partir destes fenômenos. Outras inovações podem ser percebidas nas demais ferramentas e aqui menciono algumas:
1) no Ágora Virtual, oportuniza-se o acesso à participação e ao diálogo do que não se dispõem a estar de forma presencial, comportamento típico de parte da cidadania atual;
2)   no Prefeitura na Rua, nas Audiências Públicas do Prefeito e dos Secretários e no Prefeito na Estação - por ser um espaço de acesso do cidadão ao gestor público para encaminhar suas demandas, críticas e sugestões fora do chamado horário de expediente e fora dos locais institucionais dos órgãos da administração, portanto, junto às ruas e praças dos quatro cantos da cidade, ou nas estações do Trensurb com grande fluxo - ocorre uma redefinição, melhor ainda, a correta percepção dos cidadãos do Gestor Público, trazendo-o mais próximo ao seu caráter de Servidor Público, onde a cidadania destaca o trabalho eficaz, a humildade no diálogo e a proximidade dos políticos e seus auxiliares.  Vida longa a este Sistema de Participação Cidadã e que possamos avançar em inovações de gestão para o bem dos cidadãos!

*Ivo Fiorotti é Pós-graduado em Ciências Políticas e Mestrando em Memória Social e Bens Culturais na UNILASALLE; Vereador em segundo mandato no Município de Canoas; Autor do livro “Alétheia: a cidadania em construção” - AOSOL, 2012.

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